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O Direito Global à Saúde e Acesso a Medicamentos – Capítulo 2

Arnold Vahrenwald;Giovanni A. Pedde
DOI: https://doi.org/10.36158/97912566906332
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O Direito à Saúde como Direito Humano Fundamental

O direito à saúde é universalmente reconhecido como um direito humano fundamental, consagrado em vários marcos legais internacionais, incluindo a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC). De acordo com o Artigo 25 da DUDH, “Todos têm direito a um padrão de vida adequado para a saúde e o bem-estar de si e de sua família”, incluindo o acesso a cuidados médicos. A Organização Mundial da Saúde (OMS) ressalta ainda mais esse princípio, afirmando que o “gozo do mais alto padrão de saúde possível é um dos direitos fundamentais de todo ser humano”.

Embora essas declarações forneçam uma forte base moral e legal para o direito à saúde, na prática, o acesso a medicamentos que salvam vidas permanece profundamente desigual em todo o mundo. Essa desigualdade é particularmente acentuada entre os países de alta renda e os países de baixa e média renda. As patentes farmacêuticas e os altos preços dos medicamentos resultantes são frequentemente vistos como uma das principais barreiras para alcançar o acesso equitativo aos medicamentos, criando uma tensão entre a proteção da PI e as necessidades de saúde pública.

Acesso a Medicamentos Essenciais.

A questão do acesso a medicamentos é mais aguda nos países de baixa e média renda, onde a maioria da população global reside, mas onde os sistemas de saúde são muitas vezes subfinanciados e fragmentados. Nestas regiões, os medicamentos essenciais – aqueles que satisfazem as necessidades de saúde prioritárias da população – são muitas vezes indisponíveis ou inacessíveis. Segundo estimativas da OMS, cerca de dois bilhões de pessoas no mundo não têm acesso a medicamentos essenciais, resultando em mortes evitáveis por condições como HIV/AIDS, tuberculose, malária e, mais recentemente, Covid-19.

Altos preços de medicamentos patenteados

Uma das principais barreiras ao acesso é o alto preço dos medicamentos patenteados. As empresas farmacêuticas, particularmente em países de alta renda, justificam esses preços citando a necessidade de recuperar os enormes custos associados à pesquisa e desenvolvimento (P&D), ensaios clínicos e processos de aprovação regulatória. No entanto, para os LMICs, onde os governos muitas vezes lutam para fornecer serviços básicos de saúde, pagar os altos custos dos medicamentos patenteados é muitas vezes impossível. Este tem sido o caso de vários tratamentos que salvam vidas:

  • Antirretrovirais para HIV/AIDS: no final da década de 1990, os medicamentos antirretrovirais patenteados para tratar o HIV/AIDS custavam mais de US $ 10.000 por paciente por ano em países de alta renda. Este preço estava muito além do alcance da maioria dos países de baixa e média renda, particularmente na África Subsaariana, que suportou o impacto da epidemia de HIV/AIDS. Não foi até a introdução de versões genéricas, possibilitada pelo licenciamento obrigatório e outras flexibilidades do TRIPS, que os preços dos antirretrovirais caíram drasticamente, expandindo o acesso a milhões de pacientes.
  • Tratamentos contra o câncer: Na última década, terapias inovadoras contra o câncer, como anticorpos monoclonais e inibidores da quinase, mostraram uma eficácia notável no tratamento de cânceres como leucemia e câncer de pulmão. No entanto, esses medicamentos geralmente têm preços exorbitantes, com tratamentos como o Imatinibe (Gleevec) inicialmente custando mais de US $ 100.000 por ano, muito além do alcance da maioria dos pacientes em LMICs. Embora o licenciamento obrigatório tenha sido usado em certos casos para produzir versões genéricas mais baratas, a complexidade das patentes de produtos biológicos torna isso mais difícil do que para os medicamentos tradicionais de pequenas moléculas.
  • Vacinas contra a Covid-19: A pandemia da Covid-19 destacou as disparidades globais no acesso às vacinas. Apesar do rápido desenvolvimento de vacinas, os países de baixa e média renda enfrentaram barreiras significativas na obtenção de doses, já que os países de alta renda garantiram a maioria dos suprimentos precoces. Os altos preços estabelecidos pelos fabricantes para vacinas patenteadas, combinados com desafios complexos de distribuição, agravaram ainda mais a desigualdade. Embora mecanismos como o COVAX visassem facilitar a distribuição global de vacinas, eles eram insuficientes para atender à demanda em muitos países de baixa e média renda.

Barreiras Além do Custo

Além dos altos custos, outros fatores contribuem para a falta de acesso a medicamentos essenciais nos PBMR:

  • Infraestrutura de saúde fraca: mesmo quando os medicamentos genéricos estão disponíveis, os sistemas de saúde fracos, a falta de profissionais de saúde e as redes de distribuição deficientes podem limitar sua acessibilidade.
  • Barreiras regulatórias e de propriedade intelectual: alguns LMICs carecem de estruturas regulatórias robustas para aprovar novos medicamentos, o que atrasa sua disponibilidade. Além disso, as paisagens de patentes complexas criadas por patentes secundárias (patentes depositadas em novas formulações, combinações ou métodos de uso) podem impedir a introdução oportuna de alternativas genéricas acessíveis.

O Debate Saúde Pública vs. Proteção à PI

O conflito entre a saúde pública e a proteção da PI está no centro das discussões globais sobre o acesso a medicamentos. Por um lado, as empresas farmacêuticas argumentam que as patentes são essenciais para promover a inovação, particularmente em uma indústria onde o desenvolvimento de um novo medicamento pode levar mais de uma década e bilhões de dólares. Sem os direitos exclusivos fornecidos pelas patentes, as empresas afirmam que teriam pouco incentivo para investir no desenvolvimento de novos tratamentos, particularmente para doenças que afetam os LMICs.

Por outro lado, os defensores da saúde pública argumentam que o sistema de patentes, como opera atualmente, prioriza os lucros sobre as pessoas, particularmente em tempos de emergências de saúde pública. Eles apontam para casos em que as patentes foram usadas para restringir o acesso a medicamentos que salvam vidas, como durante a crise do HIV/AIDS ou a pandemia da Covid-19. Eles argumentam que a saúde pública, particularmente nos países de baixa e média renda, deve ter precedência sobre os lucros corporativos, especialmente no caso de emergências globais de saúde.

VIAGENS e Flexibilidades de Saúde Pública

Reconhecendo a tensão entre a proteção da PI e a saúde pública, o Acordo TRIPS da OMC inclui certas flexibilidades que permitem que os países tomem medidas para proteger a saúde pública enquanto cumprem as obrigações internacionais de PI. Essas flexibilidades incluem:

  • Licenciamento Compulsório: O artigo 31 do Acordo TRIPS permite que os governos emitam licenças obrigatórias, permitindo-lhes autorizar a produção de um produto patenteado sem o consentimento do titular da patente, geralmente em troca de uma taxa de licenciamento. Esta medida tem sido usada para expandir o acesso a medicamentos essenciais em países de baixa e média renda, como durante a crise do HIV/AIDS.
  • Importação Paralela: O TRIPS permite que os países importem medicamentos patenteados de outros países onde são vendidos a preços mais baixos, permitindo assim que os LMICs comprem medicamentos de forma mais acessível.
  • Provisão Bolar: permite que os fabricantes de genéricos comecem a produzir uma versão genérica de um medicamento patenteado antes que a patente expire, para que possam entrar no mercado imediatamente após a expiração da patente.
  • A articulação mais significativa dessas flexibilidades veio na forma da Declaração de Doha sobre o Acordo TRIPS e Saúde Pública (2001), que afirmou que o TRIPS não deve impedir que os países tomem medidas para proteger a saúde pública e promoveu o uso de licenciamento obrigatório para medicamentos essenciais.

A dimensão ética: a saúde pública como prioridade

Além dos marcos legais, há um argumento ético mais amplo que sugere que o acesso a medicamentos essenciais não deve ser restringido pelos direitos de exclusividade concedidos pelas patentes. As estruturas de direitos humanos afirmam que a saúde é um direito básico que os governos têm o dever de defender. Essa perspectiva enfatiza que a comunidade global deve priorizar a saúde e o bem-estar dos indivíduos em detrimento dos direitos de propriedade intelectual, particularmente em tempos de crises de saúde. Os defensores dessa visão argumentam que o atual sistema de PI não está cumprindo suas responsabilidades para com as populações mais vulneráveis, especialmente nos países de baixa e média renda, e que são necessárias reformas para garantir que a saúde pública tenha precedência sobre os lucros.

Iniciativas Globais para Abordar o Acesso a Medicamentos

Para abordar as preocupações crescentes sobre o acesso a medicamentos essenciais, várias iniciativas internacionais foram estabelecidas:

  • O Pool de Patentes de Medicamentos (MPP): Fundado em 2010, o MPP trabalha para aumentar o acesso aos tratamentos de HIV, hepatite C e tuberculose, negociando acordos de licenciamento voluntário com empresas farmacêuticas. Esses acordos permitem a produção de versões genéricas de medicamentos patenteados, tornando-os mais acessíveis e acessíveis em LMICs. Durante a pandemia de Covid-19, o MPP estendeu seu mandato para incluir tratamentos e tecnologias de Covid-19, embora a participação de grandes empresas farmacêuticas tenha sido limitada.
  • COVAX e Equidade de Vacinas: A COVAX, co-liderada pela Gavi, a Aliança de Vacinas, a OMS e a Coalizão para Inovações de Preparação para Epidemias (CEPI), visa fornecer acesso equitativo às vacinas contra a Covid-19. No entanto, a COVAX enfrentou desafios significativos, incluindo escassez de oferta e lacunas de financiamento, destacando as dificuldades em garantir a equidade global das vacinas.
  • Programa de pré-qualificação da OMS: este programa ajuda a garantir que medicamentos, vacinas e diagnósticos atendam aos padrões globais de qualidade, segurança e eficácia, particularmente para doenças prevalentes em países de baixa e média renda. Ao facilitar o acesso a produtos de saúde de alta qualidade e a preços acessíveis, o programa ajuda a preencher a lacuna entre os medicamentos patenteados e as necessidades dos LMICs.

Este capítulo destacou os desafios críticos associados ao acesso a medicamentos essenciais, particularmente em LMICs, e as tensões entre a proteção da PI e a saúde pública. O próximo capítulo explorará os marcos legais que regem as patentes farmacêuticas, com foco no Acordo TRIPS da OMC e nas discussões em andamento sobre a renúncia proposta ao TRIPS para vacinas e tratamentos contra a Covid-19.

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